A IMUNIDADE CONSTITUCIONAL DOS TEMPLOS DE QUALQUER CULTO
Mariana do Prado Bernabé[1]
Embora o Brasil seja um país laico, a imunidade constitucional dos templos de qualquer culto apresenta-se como corolário, no âmbito tributário, do preceptivo constitucional do art. 5.º, VI, da CF/1988, o qual reza sobre a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias, bem como do próprio art. 5.º, VIII, da CF/1988, que veda a privação de direitos por motivo de crença religiosa.
Também na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, mais especificamente no seu art. 18, encontra-se esse direito:
Todo homem tem o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; esse direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância isolada ou coletivamente, em público ou em particular.
Ao mesmo tempo em que o Estado assegura a todos o livre exercício dos cultos religiosos, a liberdade de crença e de consciência, também estabelece, no art. 19 da Constituição Federal, que o Estado é laico, não podendo ter ou mesmo subvencionar qualquer igreja ou culto.
É como corolário da laicidade do Estado, e da liberdade de consciência e crença, que o constituinte vem consagrando a imunidade dos templos de qualquer culto. Com isso se busca evitar que qualquer governante ou servidor do Estado possa criar embaraços, por intermédio da instituição e da cobrança de impostos, para a livre manifestação dessas crenças.
Esse substrato é exposto com clareza por Roque Antonio Carrazza (p. 409) ao comentar o Art. 150, VI, “b”, CF/1988:
É fácil percebermos que esta alínea “b” visa a assegurar a livre manifestação da religiosidade das pessoas, isto é, a fé que elas têm em certos valores transcendentais. As entidades tributantes não podem, nem mesmo por meio de impostos, embaraçar o exercício de cultos religiosos. A Constituição garante, pois, a liberdade de crença e a igualdade entre as crenças.[2]
Assim, a imunidade tem por propósito manter a coerência entre a proteção ao direito fundamental à liberdade religiosa e a presença de um Estado laico no Brasil, ou seja, o país não professa nenhuma religião oficial, contudo entende que a manifestação religiosa seja um valor a ser protegido pelo Estado.
Neste diapasão, enquanto a competência tributária corresponde à aptidão para a criação abstrata de tributos pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, as imunidades constituem limitações a esse poder.
Neste sentido, o artigo 150, inciso VI, alínea “b” da Constituição Federal tem por finalidade assegurar a liberdade de crença, que constitui direito fundamental elencado no art. 5º, inciso VI, da CF.
A imunidade tributária, pode, então, ser definida como a “exoneração, fixada constitucionalmente, traduzida em norma expressa impeditiva da atribuição de competência tributária, que confere direito público subjetivo a certas pessoas, nos termos por ela delimitados, de não se sujeitarem à tributação.”[3]
Desta forma, a imunidade desempenha duplo papel: restringe a competência tributária dos entes da Administração Direta e outorga a seu destinatário o direito público subjetivo de não sofrer a ação tributária do Estado/Município.
E, exatamente por assegurar um direito/garantia individual, a imunidade religiosa ganha tamanha importância que se torna merecedora do status de cláusula pétrea, nos moldes do art. 60, §4º, IV, da CF. Neste sentido, vale citar as sábias palavras de Andrei Pitten Velloso[4]:
Em sua imensa maioria, as imunidades são inquestionáveis expressões de direitos fundamentais. Representam as suas garantias na esfera tributária, resguardando-os dos ônus decorrentes da tributação.
Por isso constituem cláusulas pétreas, salvaguardadas de atos lesivos do Poder Legislativo e até mesmo do poder constituinte derivado (art. 60, § 4º, da CF).
Permitir a sua restrição ou a sua abolição equivaleria a chancelar restrições ilegítimas a direitos fundamentais, sujeitando-os a mutilações e embaraços provenientes do Estado, no exercício do seu poder tributário.
[…]
Em suma, todas as imunidades do art. 150, VI da CF estão abrangidas pelas cláusulas pétreas do art. 60, § 4º, I e IV. Subjugam tanto o legislador, quanto o poder constituinte derivado, que carecem de força jurídica para aboli-las, mutilá-las ou restringi-las.
Outro ponto de fundamental importância acerca da imunidade dos templos de qualquer culto é que o constituinte optou por não a condicionar a nenhum requisito ou condição expressa em lei, ao contrário do que fez com a imunidade prevista no art. 150, VI, “c” da CF (entidades de assistência social, educacionais, partidos políticos e entidades sindicais).
Ora, corroborando com a tese aqui apresentada, não se pode esquecer do parágrafo 4º do art. 150 que, ao prover que “as vedações expressas no inciso VI, alínea “b” e “c”, compreendem o patrimônio, a renda e os serviços, relacionados com as finalidades essenciais das entidades nela mencionadas” atesta que a utilização do termo “templo” não foi no sentido de “local destinado ao culto”, mas sim de “entidade religiosa”. Um imóvel somente poderia ser um objeto de direito e nunca de direitos e obrigações.
Cumpre destacar que, da análise detalhada da doutrina e jurisprudência, se constata que o conceito de “templo” encontra-se pacificamente delineado, uma vez que os estudos e métodos de interpretação da Constituição Federal de 1988 levam à conclusão de que o legislador constituinte intencionou, enquanto “templo”, abranger não somente o local de celebração do culto, mas sim, a própria “Igreja”, sendo esta a entidade religiosa institucionalmente considerada ou juridicamente constituída (templo-entidade).
Sabbag[5], formata seu entendimento no sentido de que a Teoria Moderna (concepção do Templo-entidade) “conceitua o templo como entidade, na acepção de instituição, organização ou associação, mantenedoras do templo religioso, encaradas independentemente das coisas e pessoas objetivamente consideradas. ” E continua:
(…) Nessa medida, o templo-entidade extrapola, no plano conceitual, o formato da universitas rerum, destacado na teoria clássico-restritiva, e a estrutura da universitas juris, própria da concepção clássico-liberal, aproximando-se da concepção de organização religiosa, em todas as suas manifestações, na dimensão correspondente ao culto”.
Ainda, Roque Antônio Carrazza[6] nos traz que:
Esta imunidade, em rigor, não alcança o templo propriamente dito, isto é, o local destinado à cerimônias religiosas, mas, sim, a entidade mantenedora do templo, a igreja.
Não obstante, ao se referir às finalidades essenciais da “entidade”, no art. 150, §4º, a Constituição Federal corrobora a adoção da concepção moderna de templo-entidade.
Além disso, o Supremo Tribunal Federal também se manifestou a respeito da interpretação que deve ser dada às normas de imunidade religiosa (que é o caso do art. 150, inciso VI, alínea “b” e §4º).
Muito embora o Código Tributário Nacional tenha previsto no art. 111 que a interpretação nos casos de isenção deva se dar literalmente, isto é, restritivamente, o STF decidiu, em matéria de imunidade religiosa, que a interpretação deve ser extensiva, ampla, à luz dos princípios constitucionalmente consagrados.
Observe-se trecho da seguinte ementa:
A imunidade aos tributos de que gozam os templos de qualquer culto é projetada a partir da interpretação da totalidade que o texto da Constituição é, sobretudo do disposto nos artigos 5º, VI, 19, I e 150, VI, “b”.[7]
Portanto, a imunidade tributária não pode ser considerada como um benefício, mas como uma forma de resguardar e garantir valores apregoados pela Constituição, como no caso, a liberdade de culto, no sentido de fornecer viabilidade às atividades religiosas e sociais prestadas pela Igreja.
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[1] Advogada e Sócia no escritório Mantovani & Bernabé Advogados Associados.
[2] CARRAZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. São Paulo: Malheiros, 1997, p.576
[3] Cf. COSTA, Regina Helena. Imunidades Tributárias – Teoria e Análise da Jurisprudência do STF.
[4] VELLOZO, Andrei Pitten. Constituição Trubutária Interpretada, 2ª Edição. Livraria DO Advogado Editora, 2012, p. 291-292.
[5] SABBAG, Eduardo. Manual de direito tributário. Editora Saraiva. 2ª ed, p. 321.
[6] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. Editora Malheiros, 22ª ed., p. 716.
[7] STF, RE 578.562-9/BA, Relator: Min. Eros Grau, j. em 21/05/08.